A história da renomada médica psiquiatra Nise da Silveira acaba de virar filme e um pouco de seu vasto legado pode ser visto nos cinemas. Para coroar, a interpretação irretocável de Glória Pires dá o tom dos avanços advindos com esta grande profissional.
Quer saber mais? Confira abaixo, um bate-papo com a Terapeuta Ocupacional da Ciclos Gisele de Andrade (CREFITO 10637TO). Você vai querer correr para o cinema!
1. Como o legado de Nise da Silveira mudou a forma dos médicos e demais profissionais de saúde lidarem com pacientes psiquiátricos?
Historicamente, a medicina da saúde mental era extremamente invasiva quando Nise da Silveira iniciou sua carreira. Os tratamentos eram a base de eletrochoques e medicamentos, e pouco se via a relação destes sujeitos com ambientes externos, com a comunidade e com a vida além do hospital. Neste cenário, Nise insere uma visão da arte e das expressões, trabalhando com marcenaria e atividades construtivas, permitindo que estes pacientes tivessem expressão e voz e, principalmente, proporcionando um olhar multiprofissional sobre a realidade.
Até então, o trabalho era ligado aos cuidados com a estrutura e com os hospitais. Nise passa a vislumbrar a vida “extramuros”, com a preocupação em conectar este sujeito com a vivência além da internação psiquiátrica, tornando-se a precursora para a prática adotada atualmente. Foi a partir da sensibilidade deste olhar que se iniciou um processo de evolução sanitária e a sistematização da Terapia Ocupacional como ciência.
2. Para a área de Terapia Ocupacional, a dinâmica proposta por Nise foi um grande avanço no desenvolvimento de técnicas de acesso aos pacientes. Você concorda com isso?
Certamente sim. Nise traz uma visão de ciência para a ocupação dos pacientes no ambiente dos hospitais psiquiátricos. O que antes era apenas um olhar terapêutico, só para tirá-lo do ócio, se torna uma atividade com olhar científico e criterioso.
Além disso, com o respaldo de Jung, ela traz visão científica do fazer, da ocupação direcionada, da arte como um importante elo com o paciente. É uma forma eficaz de se construir uma relação com o sujeito, auxiliando na melhora da organização e da expressão dos sentimentos. Funciona realmente como uma “ponte” entre o mundo externo e a realidade do sujeito em movimento. Nise sistematiza a profissão e mostra que toda a atividade feita tem um objetivo, tem análise e há um resultado esperado
3. Como as reflexões de Nise e as mudanças na prática do cuidado que ela colocou em prática na Casa das Palmeiras tem semelhanças com as práticas de cuidado adotadas na Ciclos hoje?
É importante explicar que a Casa das Palmeiras era uma estrutura intermediária entre o hospital e a vida em sociedade, tal qual uma instituição de passagem. O que vivemos hoje é o desdobramento deste trabalho. A Casa das Palmeiras reflete sobre este ambiente em que o sujeito está e como é possível impulsionar o tratamento, atuando como ponte entre a psiquiatria, a vida em comunidade etc.
A luta de Hospitais Dia e de Centros de Assistência Psicossociais é de extrema importância e recente. Não lidamos apenas com a doença, mas com o sujeito. Englobamos itens como família, história, histórico laboral, além dos desejos e respeitando as limitações individuais. Na Ciclos, vemos o sujeito como um ser de possibilidades e de crescimento, com o qual podemos trabalhar e explorar vários recursos que potencializem e contribuam com o seu tratamento.
Neste mesmo viés, há um crescimento muito expressivo, pois são exploradas todas as faculdades deste sujeito: projetos de vida, território em que está inserido, sua história de vida e sua individualidade. Acho que este é o ponto: quando se respeita a individualidade dos outros é obvio que o sucesso das relações e o trabalho é notório. Não é simplesmente medicar, é cuidar.
4. O que é mais marcante na trajetória de Nise e que você acredita que deve ser levado ao conhecimento das pessoas?
A própria Nise da Silveira é uma história a ser admirada. Uma mulher que está à frente de seu tempo, de vanguarda, com história de perseguição política, trazendo a luta e a persistência como traços marcantes, contrapondo-se com um olhar sensível ao outro.
Não se pode trabalhar a saúde mental sem este olhar sensível. Observar o sujeito ao nosso lado como alguém de possibilidades, desejos, com necessidades de cuidado, de aproximação e de vínculo. A grande riqueza do trabalho de Nise é a persistência em fazer o diferente. Ela “sai da caixinha”, daquilo que era usual e comum, do que era certo ou errado, decidindo caminhar junto e segurar na mão dos seus pacientes. Não existe, a meu ver, saúde mental se o profissional não está apto a transpor o seu próprio mundo e observar o outro com uma visão de possibilidades, acreditando que o sujeito sempre pode mais.
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